A ESPERA

 
A sensação não era nada boa. Fazia muito frio, e ele, sem compreender bem o que estava acontecendo, caminhava por uma trilha de terra em meio à densa mata fechada, de onde, sequer podia enxergar a luz do sol, se é que naquele lugar existia tal coisa. Estava meio confuso, meio não, completamente. Sequer conseguia pensar de forma ordenada. Sua mente não conseguia se fixar em ponto algum, e suas lembranças mais pareciam um amontoado de coisas pelo avesso. Em resumo, dentro de sua cabeça, nada fazia sentido.
 

 

 
Tentou lembrar como chegara naquele lugar e nada, nadinha, nem adiantava tentar. Como seria possível alguém chegar a algum lugar sem ter lembrança de como lá chegara? Será que ele morrera, que aquela era a sensação de alguém morto? Olhou para seu corpo em busca de respostas, e percebeu que vestia um agasalho para frio, e assim deduziu que havia se preparado para estar ali. A questão era, onde?

 

 
Olhou para trás e via apenas uma longa trilha, estreita, sinuosa, aparentemente sem fim, uma visão semelhante a que tinha à sua frente. Dos lados, árvores, de todas as cores e alturas, e um silêncio que o fizera concluir, ou que podia estar com problemas de audição, ou que ali não existiam sons. A coisa aparentemente era bastante séria, pois sequer conseguia lembrar do próprio nome; do lugar onde morava, nem pensar. Era como se estivesse vazio, oco, sem mente.

 
Então começou a escutar um barulho de vozes, como se um grupo de pessoas se aproximasse de onde ele se encontrava. Assustou-se e logo pensou em correr, mas estava com um problema, pois não conseguia distinguir de que lado vinha aquele murmúrio, de modo que, ir em qualquer das duas direções, indo ou voltando, era arriscado. Num ímpeto de coragem, decidiu correr para frente, sem olhar para trás, e para aumentar sua aflição, as vozes se aproximavam cada vez mais dele. E em meio às vozes atrás de si, ele escutou pronunciarem um nome, que até poderia ser o seu, se soubesse qual era. E alguém lhe diz: “Fulano, não adianta se apressar, aqui tem o que você procura!”.

 

 
Por isso mesmo, quase morre de susto, quando alguém tocou nas suas costas, dizendo: “Está na hora...”. O grito que saiu de sua garganta, resultado do imenso pavor que sentiu, era de fato estranho. Não foi um grito que saiu de imediato, mas uma espécie de grito gradual, isto é, que ia aumentando de volume aos poucos, como se obedecesse ao girar do botão de volume de um rádio, cuja engrenagem estivesse falha.

 

 
Acordou tentando se segurar em alguma coisa, como se estivesse caindo de uma cama, da qual de repente lhe tirassem o lastro. Segurou num pé, isso mesmo, num pé descalço, de alguém que dormia ao seu lado, juntamente com mais uma centena de outras pessoas, naquilo que parecia uma imensa fila de espera.

 
A principio ainda estava desorientado, sem saber onde estava, sem saber onde ficava o norte ou o sul. Parecia ter perdido o juízo, e sua mente, mais se assemelhava a um sistema operacional de computador contaminado com um vírus, que o tornava demasiado lento. Mas, quando a mesma voz que o acordou, tornou a falar, sua razão começou a voltar para casa. Dizia ela: “As portas já vão ser abertas...”.

 
Lembrou então que estava, juntamente com uma centena de outras pessoas, numa imensa fila de compradores compulsivos, à espera do grande lançamento, de um grande e revolucionário produto, uma novidade, que viciados em consumo, como ele, faziam questão de ter em primeira mão. Tratava-se de um novo aparelho eletrônico, um celular, cujo diferencial era não possuir botões, funcionava por comando de voz, e apenas seu dono poderia operá-lo. Nada que o tornasse superior aos modelos anteriores, não fosse o exclusivo recurso de mostrar aos seus usuários, em tempo real, em gráficos coloridos, diversos modelos deles disponíveis, a temperatura do centro da Terra.

 
Sem compreender muito bem porque precisava daquele aparelho, o fato é que ele estava naquela fila. Também, subitamente, como se seu cérebro iniciasse um processo de auto-limpeza, onde coisas sem explicações não teriam mais espaço para ficar, não compreendia por que precisava saber da temperatura do núcleo da Terra 24 horas por dia, em tempo real; que utilidade aquilo teria para si. Percebeu que, pela primeira vez em sua vida, estava pensando, questionando alguma coisa. Lembrou que isso talvez fosse um reflexo daquele sonho “diferente” que tivera.

 
E muitos outros pensamentos questionadores, estranhos para ele, uma vez que se acostumara desde pequeno a simplesmente seguir a onda da vez, invadiam sua mente, como se fossem os antigos moradores, há muito despejados, mas que agora, tomados de uma nova motivação, reivindicassem sua antiga morada. Não era uma sensação ruim, mas antes disso, estranhamente motivadora. Lembrou das campanhas de consumo anteriores, nas quais fora envolvido, levado a consumir sem pensar, sem questionar se de fato eram necessidades, ou simples compulsão sem motivo.

 
Lembrou dos tantos aparelhos, todos ainda funcionando bem, que já possuía em casa, que eram substituídos quase como uma obrigação, a cada nova campanha, apesar de, agora percebia, não haver motivo coerente, lógico para isso. Ficou assustado com aquele percebimento, e pela primeira vez sentiu que sempre fora um autômato movido pela vontade alheia. Sentiu um misto de revolta e um tanto de liberdade, pois sabia que, a partir daquele ponto, não mais conseguiria ser um “boneco movido pela corda alheia”. A sensação era que acordara de um longo e perturbador sono, em todos os sentidos.

 
Achou graça ao observar seus amigos, ali ao seu redor, naquela imensa fila de espera, onde passaram a madrugada, a troco de nada, discutindo tolices como os benefícios de se possuir um celular que, além de fazer aquilo que todos os demais já faziam, era capaz de mostrar em tempo real, a temperatura do núcleo da Terra. Saindo dali, depois se reuniriam, como das outras vezes, cada um tentando configurar seu aparelho, com um padrão diferenciado, embora fossem todos iguais. Depois iriam para suas casas, e lá permaneceriam, diligentes, em estado de espera, até a próxima campanha, o próximo comando, a ordem de como deveriam agir. E depois, pensou, quem poderia garantir se aqueles números seriam de fato da temperatura do centro do planeta, afinal de contas, quem iria lá, com um termômetro, para conferir?

 
De fato, estava pensando, sentia uma liberdade estranha, não por ser esquisita a sensação, mas porque sentia uma segurança, uma confiança em si, que nunca experimentara antes. E sem dizer nada, já que nenhum dos demais tinham ouvidos ou olhos para outra coisa, se afastou sem ser notado, sem explicar nada a ninguém. Estava, pela primeira vez em sua vida, consciente de uma ação sua.

 

 
Autor: Alberto Grimm